“Toda vez que se inaugura um palco, os Deuses do Teatro ficam contentes e festejam… Criar um teatro é criar uma ilha de liberdade, de lucidez, de solidariedade”, escreveu Domingos de Oliveira em seu emblemático Hino à Arte. É com esse espírito — quase ritualístico — que se abre esta história: a de um grupo que, ao longo de três décadas, fez do palco um território possível, uma trincheira afetiva e um projeto de mundo no interior paulista.
Hoje, ao renascer o antigo Cine Santo Antônio, no centro de Registro, no interior de São Paulo, as palavras de Domingos ressoam como um presságio. Um edifício histórico que por décadas abrigou memórias em película volta a pulsar — agora com o calor das luzes de cena, o som das vozes, a vibração dos corpos em movimento. Seu renascimento não é fruto de acaso: é o marco de um novo ciclo de um dos coletivos artísticos mais longevos e inventivos do Brasil.

O Grupo Caixa Preta de Teatro, fundado em 1994 por dois adolescentes - Fernando Barbosa e Fabiano Muniz - chega aos 31 anos de intensidades, rupturas e resistências até chegar aqui. Transformando não apenas sua própria história, mas a forma como uma região inteira enxerga cultura, arte e comunidade.
A cena começa na escola: 1994, Pedreira, Registro/SP
No bairro da Pedreira (Vila Ribeirópolis), ainda na efervescência dos anos 1990, os irmãos encontraram no teatro um modo de decifrar o mundo. Começaram experimentando textos, improvisações e pequenas montagens escolares. O que poderia ser um grupo passageiro, criado por impulso juvenil, tornou-se um organismo coletivo de longa respiração.
Ali nascia o Caixa Preta — não apenas um nome, mas uma metáfora: um teatro que abrigaria mistérios, memórias, histórias não ditas e tudo aquilo que só pode ser revelado quando a luz do palco se acende.
Ao longo de mais de três décadas, o Grupo Caixa Preta de Teatro construiu uma trajetória que atravessa linguagens, gerações e formas de experimentar a cena. Desde seus primeiros movimentos, o coletivo consolidou uma estética própria, marcada pela investigação constante, pela fisicalidade do ator e pela busca por dramaturgias que inquietam.
A linha do tempo do grupo revela um percurso que evolui sem perder suas raízes.
A construção de uma estética: entre Molière, Shakespeare e o cotidiano brasileiro
Nos anos seguintes, o grupo ganhou força à medida que seu repertório crescia. Montaram “A Gancorra”, obra autoral de Barbosa que cruzava conflitos sociais e humor ácido, percorrendo dezenas de cidades do estado. Exploraram os clássicos com “O Burguês Ridículo”, dialogando com Molière a partir da cultura popular; atravessaram Shakespeare em “Os Dois Cavalheiros de Verona”; e trouxeram irreverência, crítica e movimento cênico para espetáculos como “Pterodáctilos”, “O Despertar da Primavera” e “A Ver Estrelas”.
Na virada dos anos 2000, firmou-se uma estética que hoje é marca registrada do grupo: um teatro físico, pulsante, que mistura dança, dramaturgia autoral, música ao vivo, releituras de clássicos e uma profunda consciência política.

A virada institucional: a criação da A.C.A. e o Abril Pra Cena
Em 2010, surge a Associação Companhia das Artes (A.C.A.), pilar organizacional do coletivo. Com ela, nasce o Festival Abril Pra Cena, que entre 2010 e 2021 trouxe mais de uma centena de espetáculos ao Vale do Ribeira, gratuitos e de diferentes regiões do país. A iniciativa, registram os documentos oficiais do grupo, foi responsável por democratizar o acesso à produção cênica contemporânea na região.
Não era apenas um festival: era uma escola livre de sensibilidades. Oficinas, workshops, encontros com mestres da cena e atividades para crianças faziam parte da programação.
Um teatro próprio: o nascimento do Espaço Caixa Preta (2019)
Com a ampliação das atividades, veio a necessidade de sede fixa. Em 2019, a A.C.A. inaugura o Espaço Grupo Caixa Preta de Teatro, um centro cultural completo: sala de 60 lugares, piso de madeira, espelhos para dança, camarim, acervo de dois mil livros, mais de mil figurinos e estrutura profissional de som e luz.

O espaço tornou-se rapidamente o principal ponto de encontro artístico da juventude do Vale do Ribeira, com programação gratuita, cursos, oficinas e uma política de portas abertas.
“Quem vê de fora, muitas vezes não percebe o tamanho do desafio que é manter vivo um espaço como este — que, na verdade, pertence a toda a cidade. Fazemos um pouco de tudo: da manutenção à limpeza, da organização à produção, da captação à divulgação e gestão. É uma batalha diária, mas uma honra imensa”, revela Fernando Barbosa, ator e produtor do Espaço.
Recebeu artistas históricos como Jean-Jacques Lemêtrê, do Théâtre du Soleil (França), a cantora Ana Cañas, Cia. Os Satyros, Companhia Ageum, Teatro do Kaos as atrizes Camila Mota e Cafira Zoé, do Teatro Oficina e muitos outros.

A internacionalização: Angola, Cabo Verde e o teatro que atravessa oceanos
A partir da década de 2010, o Caixa Preta ganhou projeção internacional. Participou de festivais em Angola e Cabo Verde, dirigindo montagens como “Romeu Ma Julieta – Uma Tragédia Crioula” e “A Órfã do Rei”, de José Mena Abrantes, apresentada no Festival Internacional de Teatro de Luanda em comemoração aos 30 anos do Elinga Teatro.
A África lusófona abriu portas e revelou afinidades entre as tradições cênicas brasileiras e africanas — corporalidades compartilhadas, ancestralidades que se encontram e uma mesma urgência de contar histórias.

A potência da formação: Território das Artes e o encontro com milhares de jovens
O Espaço Caixa Preta de Teatro abriga também a Companhia Viela de Danças Urbanas e a Associação Companhia das Artes, dividindo o mesmo espaço físico e artístico. Mais do que uma sede, é um laboratório de criação: ali se realiza o Programa Território das Artes, núcleo de pesquisa e formação em teatro e dança que, desde sua criação, já recebeu centenas de aprendizes vindos de todas as cidades do Vale do Ribeira e de diferentes bairros de Registro.
Entre 2022 e 2025, o projeto, reconhecido pela Funarte e Ministério da Cultura, transformou-se no maior programa de formação cultural do Vale do Ribeira, com atividades de teatro para crianças, adolescentes e adultos, cultura hip hop, produção, dança e criação.

Somente o Projeto Palco Aberto recebeu cerca de 800 estudantes para vivências técnicas dentro do teatro: luz, sonoplastia, maquiagem, figurino, processos e experimentos de palco.
Além disso, o espaço sediou o M5 Hip Hop Party, com batalhas, grafite, MCs e DJs — uma celebração da cultura periférica recriada todo mês no centro da cidade.

Obras recentes que marcam época
Nos últimos anos, o grupo assinou produções que sintetizam sua maturidade artística:
- • “Navegar” (2005 e retomado em 2025), musical sobre jornadas e travessias.
- • “O Primeiro Lugar é a Pessoa”, dramaturgia de Fabiano Muniz sobre identidade e afeto.
- • “Cidade dos Pássaros”, espetáculo comemorativo pelos 30 anos que levou o grupo à 39ª edição do Prêmio Governador do Estado, entre os finalistas nacionais.
- O repertório continua vivo, vibrante e politizado.

2025: o renascimento do Cine Santo Antônio e as novas produções
Em 2025, o grupo atravessa um de seus momentos mais luminosos: a reforma integral do antigo Cine Santo Antônio, no coração de Registro. O prédio que já abrigou risos, romances e melodramas projetados em película renasce como Teatro Caixa Preta — agora, sede definitiva da companhia.
A sala, que respira memória em cada parede, transforma-se no maior palco artístico do sul paulista, um espaço concebido para receber desde solos intimistas até criações experimentais, passando por processos formativos que fazem a arte circular para além da cena. É um marco de permanência, de raiz fincada, mas também de renovação: a antiga sala de cinema vira casa para um novo tempo da criação.

E, para inaugurar essa fase, o grupo apresenta um quarteto de obras que traduz sua maturidade e inquietação estética:
• “Antígona”, de Sófocles, sob direção de Fabiano Muniz, revisita o clássico sob a ótica contemporânea.
• “Saturno: Um Musical sobre o Tempo”, dirigido por Fernando Barbosa, investiga os ciclos da existência e a urgência de viver.
• “Navegar”, texto de Muniz com direção de Barbosa, retorna celebrando vinte anos de sua estreia.
• “Ocupação”, criação de Emerson Trankas em parceria com a Cia Viela de Danças Urbanas, reafirma o diálogo entre diferentes expressões artísticas.

“Ocupar um imóvel que foi um dos primeiros centros de cultura da cidade é valorizar a memória local e oferecer às pessoas acesso à arte e à diversidade”, declarou o diretor artístico Fabiano Muniz.
Hoje, as filas para os espetáculos dobram esquinas. As temporadas esgotam em minutos. A juventude encontra ali seu primeiro contato com as artes, e artistas consagrados dividem a cena com iniciantes da região.
O que mantém o Caixa Preta vivo por 31 anos?
A longevidade do Grupo Caixa Preta não se explica apenas pelo talento de seus fundadores ou pela relevância de suas produções. Trata-se de uma combinação estratégica de pesquisa, formação e vínculo comunitário que se reforça mutuamente, configurando o grupo como um organismo cultural singular no Vale do Ribeira.
Pesquisa cênica
O coração do Caixa Preta pulsa na experimentação. Sua linguagem híbrida — que mistura teatro físico, dança, dramaturgia autoral, releitura de clássicos e música — não é um fim em si mesma, mas um processo contínuo de investigação sobre o corpo, o espaço e o público. Cada montagem é, ao mesmo tempo, resultado e laboratório, mantendo o coletivo em constante movimento e renovação estética.

Formação
A pedagogia do grupo vai além da transmissão de técnicas: ela cria um ecossistema de aprendizagem e experimentação. Da Oficina Livre de Criação Teatral ao Projeto Território das Artes, milhares de jovens passaram pelo Caixa Preta, não apenas aprendendo teatro, mas descobrindo formas de expressão, pertencimento e protagonismo. A formação se torna, assim, instrumento de transformação social, um legado que se projeta para além dos palcos.

Permanência comunitária
O Caixa Preta não é um coletivo fechado sobre si mesmo; é parte viva da cidade. Sua atuação constante e integrada à comunidade faz dele um organismo cultural do Vale do Ribeira — um ponto de referência que conecta gerações, alimenta o circuito artístico local e fortalece identidades. É essa imbricação entre arte e território que garante a relevância do grupo, mesmo após três décadas.

"O Caixa Preta é um coletivo que eu tenho um carinho e respeito enormes. Formado há três décadas, é um dos grandes motores do teatro no interior do Brasil, transformando vidas e formando novos artistas. É uma referência no teatro paulista e um símbolo de resistência cultural no Vale do Ribeira, mostrando que a arte no interior tem força, qualidade e significado."
— Ivam Cabral, ator, roteirista e cineasta, co-fundador da Cia. Os Satyros
Epílogo: quando o palco se torna território
O Grupo Caixa Preta de Teatro transformou Registro em um polo de criação artística. Criou um teatro onde não havia, formou artistas onde faltavam oportunidades, levou o Vale do Ribeira ao país e ao mundo, e agora, no antigo cinema da cidade, abraça sua maior ambição: ser uma casa permanente para a arte.
Após 31 anos, o Caixa Preta não envelheceu — amadureceu. E, como toda boa obra teatral, continua em processo.
Enquanto as luzes acendem, o público entra, a cortina abre e a cidade inteira assiste ao espetáculo que ainda está sendo escrito.
Onde a Cena Faz Morada e a Câmera Faz Memória
“O Trabalho Encontra Sempre um Caminho” é um documentário produzido pela Coop Filmes que narra a trajetória de 30 anos do Grupo Caixa Preta de Teatro, de Registro/SP, um dos coletivos mais longevos e influentes do Vale do Ribeira. A obra mergulha na potência do fazer teatral fora dos grandes centros, revelando como o grupo consolidou sua identidade artística a partir da resistência, da pesquisa cênica e da construção de um território cultural próprio. Sob direção de Victor Yagyu, o filme apresenta bastidores, processos, histórias e desafios de uma companhia que fez da arte um modo de existir e de transformar a comunidade ao seu redor. É um registro fundamental sobre memória, pertencimento e o impacto sociocultural do teatro na vida das pessoas.